Dolo eventual ou culpa consciente?
É cediço a existência de polêmica quando se fala no
enquadramento da conduta ilícita de motoristas que, embriagados, assumem o
volante e fatalmente ceifam vidas de transeuntes e de outros condutores. Será
que tal comportamento antinormativo, à luz do nosso ordenamento jurídico deve
ser interpretado como doloso ou culposo?
Antes de
chegarmos a qualquer conclusão, importante se faz definir o que é conduta dolosa
e culposa e como é sua classificação, notadamente reconhecida pela doutrina
nacional.
Dolo
Segundo Zaffaroni, “dolosa é uma vontade
determinada que como qualquer vontade, pressupõe um conhecimento determinado”.
Como elucida o
renomado penalista, no dolo há dois momentos, o intelectual e o volitivo. Sendo
assim, vontade e consciência são pressupostos para o dolo.
A consciência referida,
não é o da tipicidade da conduta, mas sim a fática, v.g., o infrator ao cometer homicídio não precisa saber que sua
conduta subsumi-se perfeitamente ao art. 121 do Código Penal, apenas é
necessário que entenda as circunstâncias pelas quais está vivenciando, estar
cônscio de suas atitudes. Se o indivíduo não tiver o conhecimento fático,
estará ele agindo de maneira inconsciente, não existindo conduta (não há
conduta em decorrência de força irresistível, atos reflexos e estado de
inconsciência).[1]
O dolo também
foi definido pelo CP brasileiro, in
verbis:
“Quando o agente quis o resultado ou
assumiu os riscos de produzi-lo” (art. 18, I)
Segundo o entendimento de Damásio, o estatuto repressivo
adotou somente a Teoria da Atividade, divergindo de Rogério
Greco e Cezar Bitencourt, segundo os quais o código penal recepcionou também a Teoria
da Vontade e Teoria do Assentimento. Coadunamos com o entendimento de Greco e
Bitencurt, porque o inciso I, do art. 18, CP, diz agir com dolo aquele
que diretamente quis a produção do resultado ilícito (Teoria da Vontade) ou
assumiu os riscos de vir a produzi-lo (Teoria do Assentimento).
A doutrina
penal brasileira classifica o dolo em:
-Dolo direito: quando
o agente quer e efetivamente e pratica a conduta descrita no tipo incriminador.
É o dolo por excelência.
1º Grau – Dolo em relação ao fim proposto e aos meios escolhidos. Ex.: João
querendo matar Pedro, seu desafeto, saca um revolver e conclui seu objetivo.
Observa-se que não houve efeitos colaterais, João tão somente matou Pedro.
2º Grau – Conhecido como dolo de
consequências necessárias. No dolo direto de 2º grau o agente realiza a conduta
sabendo dos efeitos colaterais possíveis quando da sua consecução. Ex.: João,
com o objetivo de matar Pedro, esconde uma bomba no
avião que irá transportá-lo em conjunto a outros passageiros, sendo a mesma explodida. Quando isso ocorre, João
não somente ocasiona a morte de Pedro, mas também de todos que estão no avião. Logo,
o crime cometido por João foi doloso e de 1º grau para com Pedro, e de 2º grau em
relação às demais pessoas.
Ressalte-se que
essa divisão é meramente didática, não influenciando em nada na prática forense,
entretanto não deixa de ser um esteio para a interpretação e fundamentação do
magistrado.
- Dolo indireto
Alternativo: “Apresenta-se quando o
aspecto volitivo do agente se encontra direcionado, de maneira alternativa,
seja em relação ao resultado ou em relação à pessoa contra qual o crime é cometido”
(Fernando Galvão). Ex.: João desfere tiros em direção de Pedro e Caio, não
importando em quem vai acertar. Ou quando João atira em Pedro objetivando
alternativamente matá-lo ou causar alguma lesão.
Eventual: Neste tipo de dolo, o agente
prevê como possível o resultado ilícito ao praticar determinada conduta,
contudo não deixa de fazê-la, assumindo o risco. Preleciona Nelson Hungria:
“Assumir os riscos é consentir previamente no resultado, caso este venha
efetivamente ocorrer”.
Quanto à
aplicação, nosso código equiparou os efeitos do dolo direto de maneira idêntica
ao dolo eventual. A exposição de motivos
do Código Penal de 1940 esclarece: “O dolo
eventual é, assim, plenamente equiparado ao dolo direto. É inegável que
arriscar-se conscientemente a produzir um evento vale tanto quanto querê-lo:
ainda que sem interesse nele, o agente o ratifica ex ante, presta anuência ao seu advento”[2].
Culpa
“Conduta humana
voluntária (ação ou omissão) que produz resultado antijurídico não querido, mas
previsível, e excepcionalmente previsto, que podia, com a devida atenção, ser
evitado”. (Mirabete).
Rogério Greco
reconhece três tipos de culpa, quais sejam a consciente, inconsciente e imprópria.
Assim, segundo
este r. doutrinador:
· Culpa consciente existe quando o agente
tem a previsibilidade de determinado ato ilícito, se der prosseguimento a tal
conduta, e mesmo assim a pratica. Entretanto, o indivíduo acredita sinceramente
que o resultado antinormativo não irá ocorrer, crendo de maneira veemente em
suas habilidades. Não obstante, o indivíduo importa com as vidas das pessoas,
além de não querer o resultado, não o aceita.
· Culpa Inconsciente: o resultado
antinormativo era previsível, contudo não foi previsto pelo agente.
· Culpa Imprópria são aquelas hipóteses
das chamadas descriminantes putativas, em que o agente, em virtude de erro
evitável pelas circunstâncias, dá causa dolosamente a um resultado, mas
responderá a título de delito culposo. (art.20, §1º, CP)
Finalmente, depois
destes breves conceitos, reportamo-nos a questão do enquadramento da conduta
ilícita de motoristas embriagados ao volante, os quais acabam por cometer crime
no trânsito.
É comum passar
nos noticiários fatos que envolvam, concomitantemente, embriaguez, alta
velocidade, imprudência e morte. Casos como esses estão ganhando maior
visibilidade na mídia, principalmente quando se trata de pessoas importantes,
como ocorreu com THOR, filho de EIKE BATISTA.
Até aqui nada de mais.
O problema
reside, data venia, na interpretação
equivocada de nossos juízes e promotores, impulsionados pelo clamor social,
representado pelo 4º poder[3]. em
punir os motoristas infratores quase sempre como homicídio doloso,
fundamentando ser dolo eventual.
Como dito
alhures, no dolo eventual o agente assume o risco de produzir o resultado
ilícito, bem como os aceitam, não importando
com as consequências. Agora, será que todos motoristas vão estar indiferentes e
vão aceitar determinado resultado ilícito?
Para ficar mais
claro, utilizaremos o exemplo de Greco: um pai de família, que durante a
comemoração de suas bodas de prata, fica embriagado e após o término da festa, entra
em seu carro, juntamente com seus 3 filhos e esposa e imprimi velocidade acima
da permitida, buscando chegar em casa mais cedo para assistir a um jogo de
futebol que seria televisionado. Infelizmente, no meio caminho este acaba por
colidir em outro veículo matando toda sua família.
Neste instante, com base nos conceitos de dolo
eventual e culpa consciente qual seria sua decisão para o caso acima descrito?
Parece-nos
melhor a resposta de homicídio culposo, embora haja posicionamento em sentido
diverso. Veja-se que, apesar de ter previsto que tal tragédia poderia sobrevir,
acreditava sinceramente em sua não ocorrência, ademais, nunca iria aceitar o
resultado, importando desmedidamente, até por razões lógicas, com a vida das
vítimas.
Salienta-se que
nem sempre será possível verificar qual a real intenção do autor, sendo algo
muito subjetivo e de difícil prova. Entretanto, quando pairam dúvidas sobre
qual lei a ser aplicada ao caso concreto, eis que surgem os princípios. Logo, é
inafastável à aplicação do Princípio In
dubio pro reu e consequente classificação do delito em culposo.
Com entendimento diverso o STJ se
posicionou:
"I. É
incabível a desclassificação do delito de trânsito para sua forma culposa, ao
fundamento de que, nessa modalidade de crime, não se admite a hipótese de dolo
eventual, uma vez que o agente não assume o risco de produzir o resultado.
II.
Inadmissível a generalização no sentido de que os delitos decorrentes de
acidentes de trânsito são sempre culposos. Precedentes.
III. Recurso
conhecido e provido, nos termos do voto do Relator” (Resp.719477 MG, Recurso
Especial 2005/0008507-2, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª T., jul. 04/08/2005, DJ
29/08/2005, p. 430).
Decisões como
esta nos fez acreditar em Rogério Greco quando
afirmou estar existindo julgamentos baseados na equação: embriaguez + alta velocidade
= dolo eventual[4].
E como se sabe, o direito não é um ciência exata, não pode subsistir decisões
com base em fórmulas, sob pena de comprometer toda a segurança jurídica.
O que tem de haver é a análise minuciosa do caso concreto, verificando os aspectos objetivos e subjetivos a fim de se chegar a uma conclusão convincente e em
consonância com o nosso ordenamento jurídico. Pois matematizar o direito penal significa inverter a lógica de que todos estão de boa-fé, ou seja preocupados com o bem do próximo, até que se prove o contrário, criando absurdamente uma modalidade de presunção de dolo eventual.
Nesta
esteira, cabe a todos os operadores do direto, sejam advogados, delegados,
defensores públicos etc., pugnar por decisões mais coerentes, uma vez que
interpretações hodiernas quanto à análise da conduta ilícita de motoristas
imprudentes estão em desacordo com o diploma legal. Isso não apenas na seara
penal, como foi explanado aqui, mas também nas diversas áreas do direito
brasileiro.
[1] No entanto, quando a inconsciência advir de embriaguez voluntária,
ou culposa, pelo álcool ou qualquer outra substância de efeitos análogos, o
indivíduo poderá ser imputado (art. 28, CP). Preleciona Rogério Greco
“prevalece, nessa hipótese, a teoria da actio
libera in causa, visto se a ação foi livre na causa (ato de ingestão de
bebidas alcoólicas, por exemplo) deverá o agente ser responsabilizados pelos
resultados dela decorrentes”.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado
de Direito Penal, volume 1: parte geral. 13.ed. atual.São Paulo: Saraiva,
2008. pp 274.
Poder foi criado pelo inglês Lord
Macauly, em 1828, representando o poder da mídia.
[4] GRECO, Rogério. Curso de
Direito Penal. 14. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012. pp 206.
Muito bom.
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